Os Judeus em Portugal
Presença e Memória
Esther Mucznik
Há mais de um século,
precisamente em 1880, um homem lançava um apelo á união dos judeus de Lisboa e
á "constituição da colónia israelita de Lisboa". Esse homem chamava-se
Abraham Anahory, mas só viu o seu sonho realizado 17 anos depois, em
1897, quando sob o enérgico impulso de um outro Anahory, Simão, teve lugar
a 14 de Março a que ficou conhecida como a "Sessão inaugural do Comité
Israelita de Lisboa".
Hoje, nomes como,
Anahory, Zagury, Bensabat, Bensaúde, Abecassis, Buzaglo
e tantos outros, nomes ligados á fundação da Comunidade Israelita de Lisboa e
a todas as suas instituições, esses nomes já não constam dos registos dos
actuais membros da Comunidade.
Por que razão?
Morreram sem deixar descendência?
É provavelmente o caso
de alguns, mas na esmagadora maioria dos casos, esse desaparecimento dá-se por
assimilação. Ou seja, a extremamente bem conseguida integração social
dos judeus portugueses, nos séculos XIX e XX, levou e continua a levar á sua
assimilação pura e simples pela sociedade católica maioritária, nomeadamente
através da conversão pelo casamento.
Este meu trabalho
sobre os judeus em Portugal tem como pano de fundo uma questão, que sempre tem
atormentado a diáspora judaica, embora seja comum a todas as minorias: como
manter viva uma identidade específica, sem cair no isolacionismo? Como
participar plenamente na cidadania comum, impedindo a assimilação pura e
simples? Velha questão, mas que hoje em época de liberdade, de
reconhecimento dos direitos das minorias, coloca novos desafios e exige novas
respostas.
Regresso dos Judeus ou do Judaísmo?
Quando se fala da
presença contemporânea dos judeus em Portugal, fala-se normalmente do seu
regresso nos princípios do sec.XIX, coincidindo com o enfraquecimento da
Inquisição e a sua abolição em 1821. Mas seria mais rigoroso falar em
regresso do judaísmo, em vez de regresso dos judeus.
De facto, apesar de
alguns dos nomes dos judeus que se instalaram em Portugal em princípios do sec.
XIX, evocarem eventualmente as suas terras de origem ibérica (Cardoso, Pinto,
Sequerra, Conquy) e indicarem, portanto uma origem sefardita remota, a maioria
eram cidadãos originários de Marrocos e de Gibraltar, em busca de melhores
condições de vida, cujo "regresso" seria difícil de provar e de cuja
eventualidade eles não teriam certamente nem memória nem consciência.
Esta ausência de
continuidade histórica vai pesar mais tarde nas relações, nem sempre
fáceis que a Comunidade Israelita de Lisboa terá com os marranos portugueses e
nomeadamente com o grande movimento de retorno ao judaísmo oficial, por parte
de numerosos cripto-judeus portugueses nos anos 20, já no nosso século.
Aliás, de uma forma ou
de outra, os judeus portugueses estão permanentemente confrontados e cada
vez mais com a memória de outras presenças, nomeadamente, a presença da
comunidade judaica portuguesa de antes da expulsão ou a comunidade cristã-nova
do tempo da Inquisição. São, podemos dizê-lo, presenças ausentes mas que
actuam no inconsciente colectivo da memória portuguesa, fornecendo-lhe
referências e sobretudo estereótipos.
Grupos de judeus
instalaram-se como tal em Portugal, logo no início do sec. XIX, mesmo antes da
abolição da Inquisição, que só terá lugar oficialmente e por decreto do
Governo Revolucionário, a 31 de Março de 1821.
Vindos essencialmente
de Marrocos e de Gibraltar, instalaram-se fundamentalmente em Lisboa, nos
Açores e em Faro. Eram pessoas com nível cultural acima da média, sabendo
ler e escrever e falando, para além do hebraico litúrgico, o inglês ou o árabe
e o haquitia, dialecto judaico-hispano-marroquino. Tinham numerosos contactos
internacionais, não só devido ás actividades comerciais, mas também devido aos
laços familiares espalhados pelo mundo. Estes factores explicam o seu rápido
florescimento económico e cultural.
Os judeus que se
instalaram em Lisboa, vindos, em grande parte, de Gibraltar, mantiveram
cautelosamente a sua cidadania britânica. Data de 1801 a obtenção de um
pequeno terreno, no cemitério inglês da Estrela, para inumação dos mortos
segundo o ritual judaico e a primeira sepultura é a de José Amzalaga,
falecido a 26 de Fevereiro de 1804, segundo o epitáfio inscrito.
Em 1810, já havia em
Lisboa três pequenos centros de oração que funcionavam em casas particulares,
mas a primeira sinagoga pública data de 1813 e foi criada pelo Rabino
Abraham Dabella com o nome de Shaar Hashamaim (Pórtico do Céu), que era
também o nome da velha comunidade sefardita de Londres.
Para os judeus
portugueses, o sec. XIX é marcado por dois combates paralelos , mas
intimamente relacionados:
A Consolidação
Reconhecida
oficialmente, e beneficiando de um clima político e ideológico mais aberto, a
Comunidade Israelita tem uma margem de manobra maior e vai aproveitá-la para
desenvolver e consolidar as suas instituições.
Logo em 1912 são
eleitos os primeiros corpos gerentes da Comunidade Israelita de Lisboa:
Isaac Levy que, com Simão Anahory, foi o grande obreiro da unificação da
Comunidade e da edificação da Sinagoga, foi o primeiro presidente; Elias
Anahory, Vice-Presidente e Moisés Bensabat Amzalak, 2º Secretário, integrando
assim desde o início uma direcção da qual só sairá á sua morte em 1978, ou
seja 66 depois. Abraham Bensaúde, já Presidente Honorário do Comité Israelita
desde 1897, é de novo reeleito em 1912.
Nesse mesmo ano, a
Comunidade cria o Boletim, elo de ligação e corrente de informação,
entre o comité directivo e os seus membros, que será publicado até 1919,
saindo seis números. Funda também, a Associação de Estudos Hebraicos
Ubá-Le-Sion, em Dezembro de 1912, organização de carácter cultural e
sionista, dirigida por Adolfo Benarus. Em conjunto com a associação portuense
Malakah Sionith, fundada e presidida pelo Capitão de Barros Basto, em
1915, será criada a Federação Sionista de Portugal, em 1920.
Em 1914, é criada a
Biblioteca Israelita a funcionar nas instalações da Sinagoga e em
1916, o Albergue Israelita, embrião do futuro Hospital Israelita, na
Travessa do Noronha, onde passa também a funcionar a Cozinha Económica.
Esta última já tem nessa época um papel muito importante: segundo os
relatórios desta instituição, em 1899, ano da sua criação, foram servidos
4.972 jantares, em 1916 foram servidos 10.484.
Em 1922, Adolfo
Benarus consegue realizar o seu sonho: é inaugurada a 23 de Outubro, na TV. do
Noronha, a Escola Israelita, presidida por Sofia Abecassis. Adolfo
Benarus é o director pedagógico. " A escola recebe crianças a partir dos 4
anos de idade e as disciplinas leccionadas são : Ensino Infantil (dos 4 aos 7
anos), Ensino Primário Geral (a partir dos 7 anos), que habilita ao exame de
admissão aos liceus, História do povo de Israel, Língua Hebraica, Língua
Inglesa, Língua Francesa, Ginástica Médica e Costura e Bordados (sexo
feminino)". (Folheto da Direcção
da Escola, de 2 de
Março de 1923).
Em 1925, é a vez do
Hehaver, organização da juventude israelita, de carácter sionista, e que
terá um importante papel na dinamização do apoio aos refugiados durante a II
Guerra.
Em 1928 sai o 1º e
único número da Revista de Estudos Hebraicos, publicada pelo Instituto
de Estudos Hebraicos de Portugal, dirigida por Moses Bensabat Amzalak. Conta
com colaborações de grande qualidade, entre as quais, José Leite de
Vasconcelos, Joaquim de Carvalho e Augusto da Silva de Carvalho, além de Artur
Carlos de Barros Basto, Adolfo Benarus e o próprio Moses B. Amzalak.
O período entre as
duas guerras e mais precisamente a 2ª e 3ª década do sec. XX, é pois um
período de pujança para o judaísmo português.
É também um período de
chegada de imigrantes da Rússia e da Polónia, nomeadamente devido a
perseguições anti-semitas . Estas pessoas vão-se integrando na comunidade,
umas mais facilmente, outras com maior dificuldade como mostra o apelo
dirigido á " Colónia Judeo-Polaca....para tratar da (sua) participação mais
intensa e numerosa em todas as instituições da Comunidade Judaica de Lisboa".
Este apelo é assinado por elementos asquenazim (oriundos da Europa Central e
Oriental) pertencentes aos corpos gerentes da C.I.L., W. Terlo, S. Sorin,
Bromberg e S. Schwarz.
Mas, contrariamente a
uma ideia corrente, apesar de ter crescido , a comunidade não era muito
maior do que é hoje. Em 1916, havia cerca de 180 chefes de família
inscritos em Lisboa, o que representaria cerca de 800 a 1000 judeus. Nesse
mesmo ano, nasceram 18 crianças e enterraram-se 12 pessoas. Não era, pois, em
tamanho, uma comunidade muito maior. Era, sim, uma comunidade mais
participativa, que vivia a sua identidade com maior consciência. Uma
comunidade mais praticante, para quem a Sinagoga era, de facto, a casa comum e
as suas instituições uma forma de praticar a sua religião.
O fenómeno Cripto-Judaico
Paralelamente ao
desenvolvimento do judaísmo lisboeta, para o qual também vêm convergir os
judeus das comunidades dos Açores e de Faro, assiste-se nomeadamente nos anos
20 e 30 a um fenómeno de retorno ao judaísmo aberto, por parte de numerosos
cripto-judeus, no Norte e no Nordeste do país. Sob o impulso enérgico e
apaixonado de um homem, o Capitão de Barros Basto, ele próprio marrano
convertido ao judaísmo oficial, criam-se comunidades e sinagogas nalguns
dos principais centros de cripto- judaísmo, Porto, Bragança, Covilhã, Belmonte...
Contrariamente ao
judaísmo lisboeta, relativamente circunscrito e bem integrado na sociedade, a
rebelião marrana assusta o poder e sobretudo a igreja. Trata-se, de
facto, de homens e mulheres que sacodem as suas aparências católicas e
afirmam, á luz do dia, as crenças e práticas seculares judaicas. Emergem das
sombras para onde a Inquisição os relegou, instabilizam aldeias e vilas,
hierarquias e poderes. Não lhes perdoarão: acusado de atentado á moral, o
"Apóstolo dos Marranos" será afastado do exército e o seu prestígio muito
abalado, dificultando e enfraquecendo a sua obra.
A análise das razões
que levaram ao fracasso do movimento não cabem no âmbito deste trabalho.
Em contrapartida, é
interessante analisar a forma como reagiu a Comunidade de Lisboa a este
fenómeno.
Efectivamente a
leitura das actas do Comité da Comunidade mostra-nos opiniões diferentes a
este respeito: enquanto que Abraham Levy protesta contra as "circuncisões dos
cristãos novos, porque não temos nenhuma autoridade religiosa que assuma a
responsabilidade destes actos" e Samuel Sorin considera a Comunidade em
formação do Porto "uma seita, porque as orações que viu não o satisfizeram por
serem falhas do ritual tradicional ortodoxo", Moses Amzalak, Samuel Schwartz e
Adolfo Benarus têm um visão muito mais vasta e favorável ao movimento. (Actas
das sessões do Comité de 21 de Abril e 27 de Outubro de 1927)
Nomeadamente, o prof.
Amzalak defende que sejam feitas as circuncisões de cristãos novos,
argumentando que "para o caso do ingresso dos cripto judeus no seio do
judaísmo tinha sido consultado a seu tempo o Grão Rabino da Palestina, Rev.
Jacob Meir que se declarou abertamente a favor do ingresso dos referidos
cripto-judeus, logo que esteja averiguada a sua qualidade de descendentes dos
nossos antigos irmãos forçados a aceitarem o cristianismo para fugirem ás
perseguições." (mesmas actas)
Amzalak enaltece a
obra de Barros Basto, considerando a sua obra "admirável e ele possui
qualidades únicas para a realizar, pois além de ser um apóstolo pela sua
missão até ao sacrifício da vida, é também um militar ilustre do exército
português, o que politicamente dá a garantia de que nunca a sua obra poderá
ser acusada de anti-portuguesa."
É também sob proposta
de Moisés Amzalak que é votado, na reunião de 21 de Abril de 1927, um subsídio
de 100$ " ao jornal israelita Halapid, publicado na cidade do Porto,
sob a direcção do Cª. Barros Bastos. E, na reunião do Comité, de 19 de
Dezembro do mesmo ano, Amzalak anuncia a fundação pelo Capitão de uma nova
comunidade em Bragança e que " sendo provável que novas comunidades se venham
a formar entre os cripto judeus que entrarem no judaísmo tradicional, se
figurava tanto ao Sr. Barros Bastos como ao Sr Amzalak que seria útil...se
fundasse um corpo directivo que exerceria por assim dizer uma acção
orientadora sob a qual se reuniriam todas as comunidades de Portugal, tendo já
sido elaborado pelo próprio Barros Basto, o projecto das bases desse
organismo." (acta da reunião)
No entanto, a
Comunidade Israelita de Lisboa considera que, como representante da
ortodoxia, deve ser ela a auxiliar e orientar todas as outras que estão em
vias de desenvolvimento em Portugal. Nomeadamente, Samuel Schwartz e
Adolfo Benarus discordam da orientação de B. Basto, no campo da educação
das crianças cripto judaicas, considerando que esta se deve fazer em Lisboa,
em conjunto com as crianças judias " do que resultaria uma grande vantagem sob
todos os pontos de vista, inclusive o dos casamentos no futuro". (Adolfo
Benarus, reunião do Comité de 8 de Junho de 1930). Também S. Schwartz
considera fundamental que" se abram escolas onde a educação das juventudes
cristã-nova e judia se faça de forma a realizar uma confraternização completa.
Julga "importantíssimo um chefe espiritual, mas em Lisboa, e que
superintendesse e orientasse a comunidade do Porto".(mesma reunião).
Como se sabe, esta não
será a opção decidida, nem por Barros Bastos, nem pelos comités de apoio aos
marranos que se criam em Londres e Amsterdão.
A 2ª Guerra e o Papel da Comunidade no Apoio aos Judeus Refugiados
A subida ao poder de
Hitler, na Alemanha, e a implantação do nazismo vêm provocar grandes
alterações no mundo europeu e, se bem que de uma forma diferente, também em
Portugal.
Logo a partir de 1933
começam a chegar as primeiras vagas de refugiados, sobretudo alemães, a
Portugal e a Comunidade e o Hehaver vão criar, logo em 1933, a COMASSIS,
Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados, presidida primeiro
por Adolfo Benarus e mais tarde por Augusto Esaguy.
A COMASSIS, que se
mantém até 1941, ou seja, até á entrada na guerra dos Estados Unidos, teve, ao
longo dos seus 8 anos de vida, um papel muito importante, prestando
assistência moral e material a cerca de 40.000 refugiados, nomeadamente
com o apoio da Cozinha Económica e do Hospital Israelita e conseguindo que a
HICEM e a JOINT (American Joint Distribution Commitee), organismos judaicos
de assistência aos refugiados, subsidiassem materialmente a sua acção,
pagando as viagens e o sustento dos refugiados.(Relatório de A.Esaguy de
1941-Arquivo da C.I.L)
Foi também a COMASSIS
que conseguiu das autoridades portuguesas as autorizações para a instalação
em Portugal, após a queda da França, da JOINT e da HICEM, permitindo-lhes
exercer a sua actividade benemérita em Portugal.
Com a entrada na
guerra dos Estados Unidas a situação altera-se e a Comunidade vai modificar
também a sua acção no apoio aos refugiados.
Vivia-se, de facto, em
Portugal um momento crucial. Lisboa estava inundada de refugiados - segundo os
dados do Alto Comissariado Para os Refugiados da Sociedade das Nações, só
entre a derrota da França em Junho de 1940 e meados de 1941, entraram em
Portugal mais de 50 mil refugiados, muitos dos quais com vistos passados pelo
Cônsul de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, em clara
desobediência ás ordens de Salazar.
Com efeito, apesar da
política portuguesa de neutralidade, no quadro da tradicional aliança
de Portugal com a Inglaterra, apesar da abertura das fronteiras para o
trânsito dos refugiados, a Polícia Política portuguesa era contrária ao
acolhimento em massa dos refugiados, indesejáveis política e
ideologicamente.. Um telegrama do Ministro dos Negócios Estrangeiros, enviado
para a Legação de Haia a 23 de Abril de 1940, diz o seguinte:" Crescente
afluência judeus a Portugal e actividade que aqui desenvolvem tornam
inconveniente segundo opinião Policia Vigilância e Defesa do Estado continue
ser-lhes permitida entrada no país, independentemente nacionalidade
interessados.(...) Nenhum visto passaporte judeus poderá ser concedido sem
autorização deste Ministério."(transcrito por Patrik von zur Muhlen em
'Caminhos de fuga por Espanha e Portugal').
Nesta situação
dramática, o Presidente da Comunidade Israelita de Lisboa , Moisés Amzalak,
toma duas iniciativas que vão ter uma grande importância para os refugiados.
Utilizando o seu bom nome e a sua credibilidade- Amzalak era, já nessa altura,
vice reitor da Universidade Técnica de Lisboa, autor de numerosa bibliografia
e, facto muito importante, tinha estudado em Coimbra com Salazar, gozando da
sua confiança - o presidente da C.I.L vai falar com Salazar, vai interceder
junto dele para manter abertas as fronteiras para o trânsito dos refugiados.
Em segundo lugar,
propõe aos dirigentes da JOINT e da HICEM assumir directamente, através da
própria estrutura da Comunidade, o apoio aos refugiados, o que é aceite
com alívio e grande satisfação como está expresso na correspondência de
Dezembro de 1941(Arquivo da C.I.L.).
Com efeito, devido á
entrada na guerra dos E.U., era incerta a possibilidade de permanência em
Portugal das organizações americanas de assistência aos refugiados.
Por outro lado, quer
do ponto de vista financeiro, ( era necessário que o dinheiro da
América viesse em nome de pessoas ou entidades portuguesas ), quer do ponto de
vista do relacionamento com as autoridades portuguesas, nomeadamente
com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e com a PIDE, era fundamental um
organismo português, um interlocutor que gozasse de respeitabilidade e de
credibilidade. É assim criada a Secção de Assistência aos Refugiados da
Comunidade Israelita de Lisboa, dirigida por Elias Baruel, Vice-Presidente
da Comunidade, que irá funcionar até meados dos anos 50.
Embora pequena, a
Comunidade judaica de Lisboa desempenhou um papel importante. Composta por
médicos, juristas, professores e negociantes, bem integrados na sociedade
portuguesa, chefiada por um homem que gozava da confiança do poder, a
comunidade soube colocar essas características ao serviço dos refugiados,
dando assim um valioso contributo ao salvamento de milhares de pessoas. Foi
o interlocutor certo, no momento certo.
A travessia do deserto
A política portuguesa
de abertura das fronteiras, antes e durante a guerra, permitiu salvar dezenas
de milhares de pessoas que de outro modo teriam perecido.
Mas o receio da
influência de ideias e comportamentos considerados subversivos, por um lado e,
por outro, o receio de vir a constituir-se em Portugal um minoria judaica
forte,
podendo eventualmente criar-se uma "questão judaica" (Portugal não tem nenhum
problema judeu, mas seria insensato permitir que tal viesse a acontecer -
palavras do Secretário Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Luiz
Teixeira de Sampaio, em Julho de 1939), estes receios levaram a que Portugal
não permitisse nem beneficiasse de uma instalação duradoura dos refugiados.
Assim, contrariamente
ás previsões e á esperança de muitos judeus portugueses, permaneceram em
Portugal, muito poucos refugiados, perdendo assim a comunidade uma
oportunidade única de crescimento e desenvolvimento a nível religioso,
cultural, etc.
Os poucos que ficaram,
alguns de grande valor, como o Prof. Kurt Jacobson que foi reitor da Faculdade
de Ciências de Lisboa, alteraram, no entanto, as proporções
maioritariamente sefarditas da Comunidade.
Assim, em 1892, entre
os nomes dos 131 chefes de família israelitas recenseados, apenas 4 são
asquenazim ( um dos quais é, aliás o ministro oficiante da sinagoga Es Haim
2ª, Rev. Wolfinsohn). Ainda nos anos 20, já no nosso século, em 179
contribuintes, apenas 12 são asquenazim.
Em 1950, a situação é
totalmente diferente: numa lista de 290 chefes de família contribuintes, 164,
ou seja, mais de metade são asquenazim. Em 1960, mantém-se
sensivelmente a mesma proporção.
Efectivamente, como
acima foi referido, alterou-se a composição da comunidade, devido em primeiro
lugar, á imigração de judeus russos e polacos, essencialmente no primeiro
quartel do sec. XX e, depois, á vinda e instalação definitiva de algumas
famílias refugiadas da Alemanha, da Áustria e da Europa Central, durante a 2ª
Guerra.
É de notar, no
entanto, que esta alteração de proporções também se deve ao
desaparecimento, por assimilação progressiva, de nomes sefarditas,
nomeadamente, Bensliman, Benarus, Cardoso, Conquy, Dray, Pinto, e tantos
outros. Nomes tão importantes como o de Anahory estão, em 1960, reduzidos a
uma pessoa.
Apesar desta
assimilação progressiva, a comunidade mantém o seu funcionamento regular:
em 1951, uma circular da Direcção, datada de Março, refere a realização de
dois e, por vezes três serviços religiosos diários, na Sinagoga Shaaré Tikvá.
Em 1961 e 62, as actas das Assembleias Gerais dão conta da existência de um "minian"
( colectivo mínimo de dez homens necessários á oração colectiva) diário, de
manhã e á noite, na sinagoga. Existem, nessa altura, dois "Hazanim"
(oficiantes) e dois " Shohatim" (praticantes do abate ritual), o que pressupõe
uma vida judaica bastante activa.
No entanto, a leitura
atenta destas actas revela alguns problemas importantes.
Em primeiro lugar,
o problema, nunca verdadeiramente resolvido, da educação judaica A
Escola Israelita, criada, como já foi referido, em 1922, teve de fechar as
suas portas em 1937, por falta de um número suficiente de alunos, capaz de
viabilizar a escola. Sucederam-se, ao longo dos anos, diversas tentativas de
solução, desde a criação de um jardim infantil, aulas na Sinagoga, no Centro
Israelita, no Liceu Francês, mas o problema nunca foi de facto resolvido de
forma satisfatória, com pesadas consequências para a vida comunitária.
Outro problema, é a
constante pressão da questão financeira. Em 1961, a receita mensal era de
10 mil escudos e a despesa de 40 mil. O défice era suportado pela "Guemilut
Hassadim", associação israelita de socorro na hora extrema e funerais, o que
reflecte uma outra realidade preocupante da Comunidade, ou seja o
envelhecimento da sua população. Com efeito, entre 1961 e 1962, tiveram
lugar , 5 nascimentos, 3 casamentos e 15 falecimentos, sendo, pois, o saldo
claramente negativo.
As instituições
comunitárias também se vão reduzindo,
reflectindo, por um lado, as limitações comunitárias e, por outro, as
alterações da própria sociedade envolvente. Assim , deixam de existir, em
1960, o Hospital Israelita e a Cozinha Económica. A assistência aos pobres
continua a ser feita pela associação de beneficência "Somej Nophlim" (Amparo
dos Pobres), mas em prestações monetárias, o que altera por completo o
significado da própria beneficência e a relação entre beneméritos e
beneficiados.
Os anos 60 são um
período muito pouco auspicioso para o judaísmo português:
o desencadear da guerra colonial em 1961 e que se prolonga até á revolução de
Abril de 1974 e o massivo movimento de recusa da guerra, por parte da
juventude portuguesa, tem, como não podia deixar de ser, um eco profundo nos
jovens judeus, tanto mais que morrera, em Angola, o jovem judeu Meir Kopejka,
em 1961. Nos anos 60, praticamente toda uma geração de jovens judeus, sai
de Portugal, fundamentalmente para Israel, o que do ponto de vista comunitário
trará graves e duradouras consequências, alterando a normal estratificação
etária.
Por outro lado, a
década de 60 representa, em Portugal, o período mais cinzento da ditadura
salazarista, os anos da sua decadência e degradação a todos os níveis,
mas, simultaneamente, os anos em que mais se agarra ao poder. Embrenhado numa
guerra sem fim, isolado internacionalmente, o regime abafa e reprime qualquer
lufada de ar fresco susceptível de o pôr em causa.
Esta situação também
se reflecte no judaísmo português que se fecha, de certa maneira, sobre si
próprio, remetendo-se prudentemente para um "low profile", pouco
estimulante, tanto mais que a hierarquia da Igreja Católica era um dos pilares
do regime.
A abertura política e os judeus em Portugal, hoje
Com a Revolução de
Abril de 1974 iniciam-se mudanças profundas na sociedade portuguesa e na
relação desta com os "seus" judeus.
A abertura política e a
instauração da democracia e da liberdade em Portugal, vai permitir um outro
olhar sobre a história e a identidade nacional.
Á visão nacionalista
estreita, sucede a consciência da importância das heranças árabe e judaica.
Abrem-se os arquivos, surge á luz do dia a riqueza do contributo judaico,
desde os primórdios da nacionalidade até ao decreto de expulsão, no sec. XV,
mas, também, os horrores das conversões forçadas , a longa noite da
Inquisição, as discriminações dos cristãos novos.
Portugal descobre-se e
ao descobrir-se encontra-se com os seus judeus.
O pedido de perdão simbólico de Mário Soares, então Presidente da
República, em 1989, pelas perseguições que os judeus sofreram em Portugal e a
Sessão Evocativa dos 500 anos do Decreto de Expulsão dos Judeus em Portugal,
em Dezembro de 1996, no parlamento português, na qual foi votada, por
unanimidade, a revogação simbólica do Decreto, marcam, de facto, um virar de
página no relacionamento mútuo.
Cresce muitíssimo o
interesse, não só dos estudiosos, mas de vastos sectores da população sobre as
questões judaicas , paralelamente a um processo de identificação histórica,
por parte de grupos significativos da população. Basta dizer que, no último
censo, cerca de seis mil pessoas declaram-se judias, provavelmente por serem,
ou se considerarem, descendentes de cristãos-novos.
Este interesse
reflecte-se na Comunidade, através de solicitações crescentes que vão desde os
inúmeros pedidos de visitas de escolas á Sinagoga, até á organização de
cursos, palestras e seminários sobre judaísmo o que, de certo modo, veio
abalar a tranquilidade da Comunidade obrigando-a a abrir-se e a dar respostas
para as quais nem sempre estava preparada.
Mas hoje em dia já não
é possível viver fechado sobre si mesmo. A comunidade judaica, como qualquer
outra minoria, integra-se num corpo social, relativamente ao qual tem direitos
e deveres, não apenas individualmente, mas como colectivo. É este,
aliás, o sentido da nova Lei de Liberdade Religiosa, ao regular o pleno
exercício da prática religiosa, não apenas dos cidadãos, mas das
colectividades religiosas.
Sobre a Comunidade
Judaica portuguesa exercem-se, actualmente, duas forças de pressão, algo
contraditórias: