Os Judeus em Portugal

Presença e Memória

Esther Mucznik

Há mais de um século, precisamente em 1880, um homem lançava um apelo á união dos judeus de Lisboa e á "constituição da colónia israelita de Lisboa". Esse homem chamava-se Abraham Anahory, mas só viu o seu sonho realizado 17 anos depois, em 1897, quando sob o enérgico impulso de um outro Anahory, Simão, teve lugar a 14 de Março a que ficou conhecida como a "Sessão inaugural do Comité Israelita de Lisboa".

Hoje, nomes como, Anahory, Zagury, Bensabat, Bensaúde, Abecassis, Buzaglo e tantos outros, nomes ligados á fundação da Comunidade Israelita de Lisboa e a todas as suas instituições, esses nomes já não constam dos registos dos actuais membros da Comunidade.

Por que razão? Morreram sem deixar descendência?

É provavelmente o caso de alguns, mas na esmagadora maioria dos casos, esse desaparecimento dá-se por assimilação. Ou seja, a extremamente bem conseguida integração social dos judeus portugueses, nos séculos XIX e XX, levou e continua a levar á sua assimilação pura e simples pela sociedade católica maioritária, nomeadamente através da conversão pelo casamento.

Este meu trabalho sobre os judeus em Portugal tem como pano de fundo uma questão, que sempre tem atormentado a diáspora judaica, embora seja comum a todas as minorias: como manter viva uma identidade específica, sem cair no isolacionismo? Como participar plenamente na cidadania comum, impedindo a assimilação pura e simples? Velha questão, mas que hoje em época de liberdade, de reconhecimento dos direitos das minorias, coloca novos desafios e exige novas respostas.

Regresso dos Judeus ou do Judaísmo?

Quando se fala da presença contemporânea  dos judeus em Portugal, fala-se normalmente do seu regresso nos princípios do sec.XIX, coincidindo com o enfraquecimento da Inquisição e a sua abolição em 1821. Mas seria mais rigoroso falar em regresso do judaísmo, em vez de regresso dos judeus.

De facto, apesar de alguns dos nomes dos judeus que se instalaram em Portugal em princípios do sec. XIX, evocarem eventualmente as suas terras de origem ibérica (Cardoso, Pinto, Sequerra, Conquy) e indicarem, portanto uma origem sefardita remota, a maioria eram cidadãos originários de Marrocos e de Gibraltar, em busca de melhores condições de vida, cujo "regresso" seria difícil de provar  e de cuja eventualidade eles não teriam certamente nem memória nem consciência.

Esta ausência de continuidade histórica vai pesar mais tarde nas relações, nem sempre fáceis que a Comunidade Israelita de Lisboa terá com os marranos portugueses e nomeadamente com o grande movimento de retorno ao judaísmo oficial, por parte de numerosos cripto-judeus portugueses nos anos 20, já no nosso século.

Aliás, de uma forma ou de outra, os judeus portugueses  estão permanentemente confrontados e cada vez mais com a memória de outras presenças, nomeadamente, a presença da comunidade judaica portuguesa de antes da expulsão ou a comunidade cristã-nova do tempo da Inquisição. São, podemos dizê-lo, presenças ausentes mas que actuam no inconsciente colectivo da memória portuguesa, fornecendo-lhe referências e sobretudo estereótipos.

Grupos de judeus  instalaram-se como tal em Portugal, logo no início do sec. XIX, mesmo antes da abolição da Inquisição, que só terá lugar oficialmente e por decreto do Governo Revolucionário, a 31 de Março de 1821.

Vindos essencialmente de Marrocos e de Gibraltar, instalaram-se fundamentalmente em Lisboa, nos Açores e em Faro. Eram pessoas com nível cultural acima da média, sabendo ler e escrever e falando, para além do hebraico litúrgico, o inglês ou o árabe e o haquitia, dialecto judaico-hispano-marroquino. Tinham numerosos contactos internacionais, não só devido ás actividades comerciais, mas também devido aos laços familiares espalhados pelo mundo. Estes factores explicam o seu rápido florescimento económico e cultural.

Os judeus que se instalaram em Lisboa, vindos, em grande parte, de Gibraltar, mantiveram cautelosamente a sua cidadania britânica. Data de 1801 a obtenção de um pequeno terreno, no cemitério inglês da Estrela, para inumação dos mortos segundo o ritual judaico e a primeira sepultura é a de José Amzalaga, falecido a 26 de Fevereiro de 1804, segundo o epitáfio inscrito.

Em 1810, já havia em Lisboa três pequenos centros de oração que funcionavam em casas particulares, mas a primeira sinagoga pública data de 1813 e foi criada pelo Rabino Abraham Dabella com o nome de Shaar Hashamaim (Pórtico do Céu), que era também o nome da velha comunidade sefardita de Londres.

Para os judeus portugueses, o sec. XIX é marcado por dois combates paralelos , mas intimamente relacionados:

bullet o esforço para unificar e reunir numa única comunidade, as diferentes congregações, separadas por rivalidades internas. Este esforço só será coroado de êxito  em finais do século , em primeiro lugar, com a unificação dos serviços de Shehitá (abate ritual da carne) em 1894  e, em seguida, com a eleição em 1897 do primeiro Comité Israelita de Lisboa e de uma comissão para a edificação de uma sinagoga única e digna desse nome.
bullet a luta pelo reconhecimento oficial da comunidade. Com efeito, o fim da Inquisição não significou liberdade religiosa. A Carta Constitucional de 1826 reconhecia apenas o catolicismo como a única religião oficialmente permitida aos portugueses, remetendo os outros cultos para o foro privado dos estrangeiros.

O terreno para edificar a Sinagoga de Lisboa "Shaaré Tikvá" (Portas da Esperança) teve de ser comprado em nome de pessoas particulares e a própria sinagoga, inaugurada em 1904, obrigatoriamente construída sem fachada para a rua, porque era proibido, ainda nessa época, a visibilidade de um templo que não fosse de religião católica.

Há, no entanto, dois alvarás reais reconhecendo implicitamente, embora ainda não formalmente, a existência da comunidade judaica de Lisboa.  O primeiro é um alvará do rei D. Luís, datado de 1868, reconhecendo aos "judeus de Lisboa a permissão de instalar um cemitério para a inumação dos seus correligionários". Trata-se do cemitério da Calçada das Lages ainda hoje utilizado.

O outro alvará, de 1892, emana do Governo Civil e ratifica os estatutos da" Associação Guemilut Hassadim, irmandade israelita de socorros mútuos na hora extrema e funerais". Ambos têm uma importância histórica real porque representam, de facto, um reconhecimento da existência legal da religião judaica, em Portugal.

No entanto, só a implantação da República reconhece á Comunidade Israelita existência legal: os estatutos  elaborados em 1900 e nunca reconhecidos oficialmente são, depois de modificados em Assembleia Geral de 1911, finalmente aprovados, em Alvará do Governo Civil, a 9 de Maio de 1912.Com efeito, só a partir dessa altura, a comunidade judaica portuguesa passa a ter existência legal em Portugal, 416 anos depois do édito de expulsão de D. Manuel, 91 depois da extinção da Inquisição.

Como podemos caracterizar os judeus  do sec. XIX e início do sec. XX?

Em primeiro lugar, são homens bem sucedidos nos negócios: entre as numerosas casas comerciais criadas no sec. XIX, encontramos a Casa Levy  & Cª, criada em 1807,comercializando essencialmente o azeite, a Casa Bensaúde e Cª, fundada em 1872, para o comércio marítimo e navegação, os Cardoso, na chapelaria, a retrosaria Afflalo, a Buzzaglo e Cª e a Abecassis Irmãos e C.ª , nos produtos químicos, e tantas outras.

Também se destacam noutros campos: na política, Levy Bensabat e o filho Marcos Bensabat, na luta contra o absolutismo de D.Miguel, chegando o primeiro a ser preso; nas letras e artes, Joshua Benoliel, praticamente o criador da reportagem fotográfica em Portugal, Maurício (Moisés) Bensaúde, cantor lírico e depois administrador do Teatro de S. Carlos; na medicina e nas ciências, o Dr Mark Anahory Athias, Alfredo Bensaúde e tantos outros.

São, pois, homens bem sucedidos e bem integrados na sociedade portuguesa. Mas são, também homens e mulheres profundamente religiosos e que praticam a beneficência como parte integrante e decorrente dessa religiosidade.

Existem inúmeros exemplos dessa religiosidade:

bullet Em 1882 é criada a organização Ozer Dalim, por Moses Amzalak. O objectivo desta instituição era fornecer aos israelitas pobres alimentos para o Sábado, de maneira a que pudessem respeitar "um dever de consciência e, ainda mais, um dever para eles próprios: o descanso semanal" (Boletim nº1 da C.I.L -!912)
bulletpara além desta organização de carácter essencialmente religioso, muitas outras se criam com objectivos de beneficência - a Somej-Nophlim (Amparo dos Pobres), em1865, por Simão Anahory;  a Cozinha Económica, em 1899, por Leão Amzalak, a Aula de Costura, para meninas pobres em 1909...
bulletum outro exemplo dessa religiosidade é o facto de quase todos os judeus de Lisboa comerem carne "casher" (própria para consumo, segundo as regras judaicas). Já em 1859, havia em Lisboa  dois "shohatim" (funcionários do abate ritual), como  atesta um contrato passado entre eles e a Sinagoga Etz Haim (Árvore da Vida), no dia 1 de Dezembro desse ano. Aliás, as actas das reuniões realizadas ao longo do sec. XIX e parte do sec. XX reflectem a preocupação que sempre constituiu o abastecimento de carne "casher".

A Consolidação

Reconhecida oficialmente, e beneficiando de um clima político e ideológico mais aberto, a Comunidade Israelita tem uma margem de manobra maior e vai aproveitá-la para desenvolver e consolidar as suas instituições.

Logo em 1912 são eleitos os primeiros corpos gerentes da Comunidade Israelita de Lisboa: Isaac Levy  que, com Simão Anahory, foi o grande obreiro da unificação da Comunidade e da edificação da Sinagoga, foi o primeiro presidente; Elias Anahory, Vice-Presidente e Moisés Bensabat Amzalak, 2º Secretário, integrando assim desde o início uma direcção da qual só sairá á sua morte em 1978, ou seja 66 depois. Abraham Bensaúde, já Presidente Honorário do Comité Israelita desde 1897, é de novo reeleito em 1912.

Nesse mesmo ano, a Comunidade cria o Boletim, elo de ligação e corrente de informação, entre o comité directivo e os seus membros, que será publicado até 1919, saindo seis números. Funda também, a Associação de Estudos Hebraicos Ubá-Le-Sion, em Dezembro de 1912, organização de carácter cultural e sionista, dirigida por Adolfo Benarus. Em conjunto com a associação portuense Malakah Sionith, fundada e presidida pelo Capitão de Barros Basto, em 1915, será criada a Federação Sionista de Portugal, em 1920.

 Em 1914, é criada a Biblioteca Israelita a funcionar nas instalações da Sinagoga e em 1916,  o Albergue Israelita, embrião do futuro Hospital Israelita, na Travessa do Noronha, onde passa também a funcionar a Cozinha Económica. Esta última já tem nessa época um papel muito importante: segundo os relatórios desta instituição, em 1899, ano da sua criação, foram servidos 4.972 jantares, em 1916  foram servidos 10.484.

Em 1922, Adolfo Benarus consegue realizar o seu sonho: é inaugurada a 23 de Outubro, na TV. do Noronha, a Escola Israelita, presidida por Sofia Abecassis. Adolfo Benarus é o director pedagógico. " A escola recebe crianças a partir dos 4 anos de idade e as disciplinas leccionadas são : Ensino Infantil (dos 4 aos 7 anos), Ensino Primário Geral (a partir dos 7 anos), que habilita ao exame de admissão aos liceus, História do povo de Israel, Língua Hebraica, Língua Inglesa, Língua Francesa, Ginástica Médica e Costura e Bordados (sexo feminino)". (Folheto da Direcção da Escola, de 2 de Março de 1923).

Em 1925, é a vez do Hehaver, organização da juventude israelita, de carácter sionista, e que terá um importante papel na dinamização do apoio aos refugiados durante a II Guerra.

Em 1928 sai o 1º e único número da Revista de Estudos Hebraicos, publicada pelo Instituto de Estudos Hebraicos de Portugal, dirigida por Moses Bensabat Amzalak. Conta com colaborações de grande qualidade, entre as quais, José Leite de Vasconcelos, Joaquim de Carvalho e Augusto da Silva de Carvalho, além de Artur Carlos de Barros Basto, Adolfo Benarus e o próprio Moses B. Amzalak.

O período entre as duas guerras e mais precisamente a 2ª e 3ª década do sec. XX, é pois um período de pujança para o judaísmo português.

É também um período de chegada de imigrantes da Rússia e da Polónia, nomeadamente devido a perseguições anti-semitas .  Estas pessoas vão-se integrando na comunidade, umas mais facilmente, outras com maior dificuldade como mostra o apelo dirigido á " Colónia Judeo-Polaca....para tratar  da (sua) participação mais intensa e numerosa em todas as instituições da Comunidade Judaica de Lisboa". Este apelo é assinado por elementos asquenazim (oriundos da Europa Central e Oriental) pertencentes aos corpos gerentes da C.I.L., W. Terlo, S. Sorin, Bromberg e S. Schwarz.

Mas, contrariamente a uma ideia corrente, apesar de ter crescido , a comunidade não era muito maior do que é hoje. Em 1916, havia cerca de 180 chefes de família inscritos em Lisboa, o que representaria cerca de 800 a 1000 judeus. Nesse mesmo ano, nasceram 18 crianças e enterraram-se 12 pessoas. Não era, pois, em tamanho, uma comunidade muito maior. Era, sim, uma comunidade mais participativa, que vivia a sua identidade com  maior consciência. Uma comunidade mais praticante, para quem a Sinagoga era, de facto, a casa comum e as suas instituições uma forma de praticar a sua religião.

O fenómeno Cripto-Judaico

Paralelamente ao desenvolvimento do judaísmo lisboeta, para o qual também vêm convergir  os judeus das comunidades dos Açores e de Faro, assiste-se nomeadamente nos anos 20 e 30  a um fenómeno de retorno ao judaísmo aberto, por parte de numerosos cripto-judeus, no Norte e no Nordeste do país. Sob o impulso enérgico e apaixonado de um homem, o Capitão de Barros Basto, ele próprio marrano convertido ao judaísmo oficial, criam-se comunidades e sinagogas nalguns dos principais centros de cripto- judaísmo, Porto, Bragança, Covilhã, Belmonte...

Contrariamente ao judaísmo lisboeta, relativamente circunscrito e bem integrado na sociedade, a rebelião marrana assusta o poder e sobretudo a igreja. Trata-se, de facto, de homens e mulheres que sacodem as suas aparências católicas e afirmam, á luz  do dia, as crenças e práticas seculares judaicas. Emergem das sombras para onde a Inquisição os relegou, instabilizam aldeias e vilas, hierarquias e poderes. Não lhes perdoarão: acusado de atentado á moral, o "Apóstolo dos Marranos" será afastado do exército e o seu prestígio muito abalado, dificultando e enfraquecendo a sua obra.

A análise das razões que levaram ao fracasso do movimento não cabem no âmbito deste trabalho.

Em contrapartida, é interessante analisar a forma como reagiu a Comunidade de Lisboa a este fenómeno.

Efectivamente a leitura das actas do Comité da Comunidade mostra-nos opiniões diferentes a este respeito: enquanto que Abraham Levy protesta contra as "circuncisões dos cristãos novos, porque não temos nenhuma autoridade religiosa que assuma a responsabilidade destes actos" e Samuel Sorin considera a Comunidade em formação do Porto "uma seita, porque as orações que viu não o satisfizeram por serem falhas do ritual tradicional ortodoxo", Moses Amzalak, Samuel Schwartz e Adolfo Benarus têm um visão muito mais vasta e favorável ao movimento. (Actas das sessões do Comité de 21 de Abril e 27 de Outubro de 1927)

Nomeadamente, o prof. Amzalak defende que sejam feitas as circuncisões de cristãos novos, argumentando que "para o caso do ingresso dos cripto judeus no seio do judaísmo tinha sido consultado a seu tempo o Grão Rabino da Palestina, Rev. Jacob Meir que se declarou abertamente a favor do ingresso dos referidos cripto-judeus, logo que esteja averiguada a sua qualidade de descendentes dos nossos antigos irmãos forçados a aceitarem o cristianismo para fugirem ás perseguições." (mesmas actas)

Amzalak enaltece a obra de Barros Basto, considerando a sua obra "admirável e ele possui qualidades únicas para a realizar, pois além de ser um apóstolo pela sua missão até ao sacrifício da vida, é também um militar ilustre do exército português, o que politicamente dá a garantia de que nunca a sua obra poderá ser acusada de anti-portuguesa."

É também sob proposta de Moisés Amzalak que é votado, na reunião de 21 de Abril de 1927, um subsídio de 100$ " ao jornal israelita Halapid, publicado na cidade do Porto, sob a direcção do Cª. Barros Bastos. E, na reunião do Comité, de 19 de Dezembro do mesmo ano, Amzalak anuncia a fundação pelo Capitão de uma nova comunidade em Bragança e que " sendo provável que novas comunidades se venham a formar entre os cripto judeus que entrarem no judaísmo tradicional, se figurava tanto ao Sr. Barros Bastos como ao Sr Amzalak que seria útil...se fundasse um corpo directivo que exerceria por assim dizer uma acção orientadora sob a qual se reuniriam todas as comunidades de Portugal, tendo já sido elaborado pelo próprio Barros Basto, o projecto das bases desse organismo." (acta da reunião)

No entanto, a Comunidade Israelita de Lisboa considera que,  como representante da ortodoxia, deve ser ela a auxiliar e orientar todas as outras que estão em vias de desenvolvimento  em Portugal. Nomeadamente, Samuel Schwartz e Adolfo Benarus discordam da orientação de B. Basto, no campo da educação das crianças cripto judaicas, considerando que esta se deve fazer em Lisboa, em conjunto com as crianças judias " do que resultaria uma grande vantagem sob todos os pontos de vista, inclusive o dos casamentos no futuro". (Adolfo Benarus, reunião do Comité de 8 de Junho de 1930). Também S. Schwartz considera fundamental que" se abram escolas  onde a educação das juventudes cristã-nova e judia se faça de forma a realizar uma confraternização completa. Julga "importantíssimo um chefe espiritual, mas em Lisboa, e que superintendesse e orientasse a comunidade do Porto".(mesma reunião).

Como se sabe, esta não será a opção decidida, nem por Barros Bastos, nem pelos comités de apoio aos marranos que se criam em Londres e Amsterdão.     

A 2ª Guerra e o Papel da Comunidade no Apoio aos Judeus Refugiados

A subida ao poder de Hitler, na Alemanha, e a implantação do nazismo vêm provocar grandes alterações no mundo europeu e, se bem que de uma forma diferente, também em Portugal.

Logo a partir de 1933 começam a chegar as primeiras vagas de refugiados, sobretudo alemães,  a Portugal  e a Comunidade e o Hehaver vão criar, logo em 1933, a COMASSIS, Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados, presidida primeiro por Adolfo Benarus e mais tarde por Augusto Esaguy.

A COMASSIS, que se mantém até 1941, ou seja, até á entrada na guerra dos Estados Unidos, teve, ao longo dos seus 8 anos de vida, um papel muito importante, prestando assistência moral e material a cerca de 40.000 refugiados, nomeadamente com o apoio da Cozinha Económica  e do Hospital Israelita e conseguindo que a HICEM e a  JOINT (American Joint Distribution Commitee), organismos judaicos de assistência aos refugiados, subsidiassem materialmente a sua acção, pagando as viagens e o sustento dos refugiados.(Relatório de A.Esaguy de 1941-Arquivo da C.I.L)

Foi também a COMASSIS que conseguiu das autoridades portuguesas as autorizações para a instalação em Portugal, após a queda da França, da JOINT e da HICEM, permitindo-lhes exercer a sua actividade benemérita em Portugal.

Com a entrada na guerra dos Estados Unidas a situação altera-se e a Comunidade vai modificar também a sua acção no apoio aos refugiados.

Vivia-se, de facto, em Portugal um momento crucial. Lisboa estava inundada de refugiados - segundo os dados do Alto Comissariado Para os Refugiados da Sociedade das Nações, só entre a derrota da França em Junho de 1940 e meados de 1941, entraram em Portugal mais de 50 mil refugiados, muitos dos quais com vistos passados pelo Cônsul de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes,  em clara desobediência ás ordens de Salazar.

Com efeito, apesar da política portuguesa de neutralidade, no quadro da tradicional aliança de Portugal com a Inglaterra, apesar da abertura das fronteiras para o trânsito dos refugiados, a Polícia Política portuguesa era contrária ao acolhimento em massa dos refugiados, indesejáveis política e ideologicamente.. Um telegrama do Ministro dos Negócios Estrangeiros, enviado para a Legação de Haia a 23 de Abril de 1940, diz o seguinte:" Crescente afluência judeus a Portugal e actividade que aqui desenvolvem tornam inconveniente segundo opinião Policia Vigilância e Defesa do Estado continue ser-lhes permitida entrada no país, independentemente nacionalidade interessados.(...) Nenhum visto passaporte judeus poderá ser concedido sem autorização deste Ministério."(transcrito por Patrik von zur Muhlen em 'Caminhos de fuga por Espanha e Portugal').

Nesta situação dramática, o Presidente da Comunidade Israelita de Lisboa , Moisés Amzalak, toma duas iniciativas que vão ter uma grande importância para os refugiados. Utilizando o seu bom nome e a sua credibilidade- Amzalak era, já nessa altura, vice reitor da Universidade Técnica de Lisboa, autor de numerosa bibliografia e, facto muito importante, tinha estudado em Coimbra com Salazar, gozando da sua confiança - o presidente da C.I.L vai falar com Salazar, vai interceder junto dele para manter abertas as fronteiras para o trânsito dos refugiados.

Em segundo lugar, propõe aos dirigentes da JOINT e da HICEM assumir directamente, através da própria estrutura da Comunidade, o apoio aos refugiados, o que é aceite com alívio e grande satisfação como está expresso na correspondência de Dezembro de 1941(Arquivo da C.I.L.).

Com efeito, devido á entrada na guerra dos E.U., era incerta a possibilidade de permanência em Portugal das organizações americanas de assistência aos refugiados.

Por outro lado, quer do ponto de vista financeiro, ( era necessário que o dinheiro da América viesse em nome de pessoas ou entidades portuguesas ), quer do ponto de vista do relacionamento com as autoridades portuguesas, nomeadamente com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e com a PIDE, era fundamental um organismo português, um interlocutor que gozasse de respeitabilidade e de credibilidade. É assim criada a Secção de Assistência aos Refugiados da Comunidade Israelita de Lisboa, dirigida por Elias Baruel, Vice-Presidente da Comunidade, que irá funcionar até meados dos anos 50.

Embora pequena, a Comunidade judaica de Lisboa desempenhou um papel importante.  Composta por médicos, juristas, professores e negociantes, bem integrados na sociedade portuguesa, chefiada por um homem que gozava da confiança do poder, a comunidade soube colocar  essas características ao serviço dos refugiados, dando assim um valioso contributo ao salvamento de milhares de pessoas. Foi o interlocutor certo, no momento certo.

A travessia do deserto

A política portuguesa de abertura das fronteiras, antes e durante a guerra, permitiu salvar dezenas de milhares de pessoas que de outro modo teriam perecido.

Mas o receio da influência de ideias e comportamentos considerados subversivos, por um lado e, por outro, o receio de vir a constituir-se em Portugal um minoria judaica forte, podendo eventualmente criar-se uma "questão judaica" (Portugal não tem nenhum problema judeu, mas seria insensato permitir que tal viesse a acontecer - palavras do Secretário Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Luiz Teixeira de Sampaio, em Julho de 1939), estes receios levaram a que Portugal não permitisse nem beneficiasse de uma instalação duradoura dos refugiados.

Assim, contrariamente ás previsões e á esperança de muitos judeus portugueses, permaneceram em Portugal, muito poucos refugiados, perdendo assim a comunidade uma oportunidade única de crescimento e desenvolvimento a nível religioso, cultural, etc.

Os poucos que ficaram, alguns de grande valor, como o Prof. Kurt Jacobson que foi reitor da Faculdade de Ciências de Lisboa, alteraram, no entanto, as proporções maioritariamente sefarditas da Comunidade.

Assim, em 1892,  entre os nomes dos 131 chefes de família israelitas recenseados, apenas 4 são asquenazim ( um dos quais é, aliás o ministro oficiante da sinagoga Es Haim 2ª, Rev. Wolfinsohn). Ainda nos anos 20, já no nosso século, em 179 contribuintes, apenas 12 são asquenazim.

Em 1950, a situação é totalmente diferente: numa lista de 290 chefes de família contribuintes, 164, ou seja, mais de metade são asquenazim. Em 1960, mantém-se sensivelmente a mesma proporção.

Efectivamente, como acima foi referido, alterou-se a composição da comunidade, devido em primeiro lugar, á imigração de judeus russos e polacos, essencialmente no primeiro quartel do sec. XX e, depois, á vinda e instalação definitiva de algumas famílias refugiadas da Alemanha, da Áustria e da Europa Central, durante a 2ª Guerra.

É de notar, no entanto, que esta alteração de proporções também se deve ao desaparecimento, por  assimilação progressiva, de nomes sefarditas, nomeadamente, Bensliman, Benarus, Cardoso, Conquy, Dray, Pinto, e tantos outros. Nomes tão importantes como o de Anahory  estão, em 1960, reduzidos a uma pessoa.

Apesar desta assimilação progressiva, a comunidade mantém o seu funcionamento regular: em 1951, uma circular da Direcção, datada de Março, refere a realização de dois e, por vezes três serviços religiosos diários, na Sinagoga Shaaré Tikvá. Em 1961 e 62, as actas das Assembleias Gerais dão conta da existência de um "minian" ( colectivo mínimo de dez homens necessários á oração colectiva) diário, de manhã e á noite, na sinagoga. Existem, nessa altura, dois "Hazanim" (oficiantes) e dois " Shohatim" (praticantes do abate ritual), o que pressupõe uma vida judaica bastante activa.

No entanto, a leitura atenta destas actas revela alguns problemas importantes.

Em primeiro lugar, o problema, nunca verdadeiramente resolvido, da educação judaica A Escola Israelita, criada, como já foi referido, em 1922, teve de fechar as suas portas em 1937, por falta de um número suficiente de alunos, capaz de viabilizar a escola. Sucederam-se, ao longo dos anos, diversas tentativas de solução, desde a criação de  um jardim infantil, aulas na Sinagoga, no Centro Israelita, no Liceu Francês, mas  o problema nunca foi de facto resolvido de forma satisfatória, com pesadas consequências para a vida comunitária.

Outro problema, é a constante pressão da questão financeira. Em 1961, a receita mensal era de 10 mil escudos e a despesa de 40 mil. O défice era suportado pela "Guemilut  Hassadim", associação israelita de socorro na hora extrema e funerais, o que reflecte uma outra realidade preocupante da Comunidade, ou seja o envelhecimento da sua população. Com efeito, entre 1961 e 1962, tiveram lugar , 5 nascimentos, 3 casamentos e 15 falecimentos, sendo, pois, o saldo claramente negativo.

As instituições comunitárias também se vão reduzindo, reflectindo, por um lado, as limitações comunitárias e, por outro, as alterações  da própria sociedade envolvente. Assim , deixam de existir, em 1960, o Hospital Israelita e a Cozinha Económica. A assistência aos pobres continua a ser feita pela  associação de beneficência "Somej Nophlim" (Amparo dos Pobres), mas em prestações monetárias, o que altera por completo o significado da própria beneficência e a relação entre beneméritos e beneficiados.

Os anos 60 são um período muito pouco auspicioso para o judaísmo português: o desencadear da guerra colonial em 1961 e que se prolonga até á revolução de Abril de 1974 e o massivo movimento de recusa da guerra, por parte da juventude portuguesa, tem, como não podia deixar de ser, um eco profundo nos jovens judeus, tanto mais que morrera, em Angola, o jovem judeu Meir Kopejka, em 1961. Nos anos 60, praticamente toda uma geração de jovens judeus, sai de Portugal, fundamentalmente para Israel, o que do ponto de vista comunitário trará graves e duradouras consequências, alterando a normal estratificação etária.

Por outro lado, a década de 60 representa, em Portugal, o período mais cinzento da ditadura salazarista, os anos da sua decadência e degradação a todos os níveis, mas, simultaneamente, os anos em que mais se agarra ao poder. Embrenhado numa guerra sem fim, isolado internacionalmente, o regime abafa e reprime qualquer lufada de ar fresco susceptível de o pôr em causa.

Esta situação também se reflecte no judaísmo português que se fecha, de certa maneira, sobre si próprio, remetendo-se prudentemente para um "low profile", pouco estimulante, tanto mais que a hierarquia da Igreja Católica era um dos pilares do regime. 

A abertura política  e os judeus em Portugal, hoje

Com a Revolução de Abril de 1974  iniciam-se mudanças profundas na sociedade portuguesa e na  relação desta com os "seus" judeus.

A abertura política e a instauração da democracia  e da liberdade em Portugal, vai permitir  um outro olhar sobre a história e a identidade nacional.

Á visão nacionalista estreita, sucede a consciência da importância das  heranças árabe e judaica. Abrem-se os arquivos, surge á luz do dia a riqueza do contributo judaico, desde os primórdios da nacionalidade até ao decreto de expulsão, no sec. XV, mas, também, os horrores das conversões forçadas , a longa noite da Inquisição, as discriminações dos cristãos novos.

Portugal descobre-se e ao descobrir-se encontra-se com os seus judeus. O pedido de perdão simbólico de Mário Soares, então Presidente da República, em 1989, pelas perseguições que os judeus sofreram em Portugal e a Sessão Evocativa dos 500 anos do Decreto de Expulsão dos Judeus em Portugal, em Dezembro de 1996, no parlamento português, na qual foi votada, por unanimidade, a revogação simbólica do Decreto, marcam, de facto, um virar de página no relacionamento mútuo.

Cresce muitíssimo o interesse, não só dos estudiosos, mas de vastos sectores da população sobre as questões judaicas , paralelamente a um processo de identificação histórica, por parte de grupos significativos da população. Basta dizer que, no último censo, cerca de seis mil pessoas declaram-se judias, provavelmente por serem, ou se considerarem, descendentes de cristãos-novos.

Este interesse reflecte-se na Comunidade, através de solicitações crescentes que vão desde os inúmeros pedidos de visitas de escolas á Sinagoga, até á organização de cursos, palestras e seminários sobre judaísmo o que, de certo modo, veio abalar  a tranquilidade da Comunidade obrigando-a a abrir-se e a dar respostas para as quais nem sempre estava preparada.

Mas hoje em dia já não é possível viver fechado sobre si mesmo. A comunidade judaica, como qualquer outra minoria, integra-se num corpo social, relativamente ao qual tem direitos e deveres, não apenas individualmente, mas como colectivo. É este, aliás, o sentido da nova Lei de Liberdade Religiosa, ao regular o pleno exercício da prática religiosa, não apenas dos cidadãos, mas das colectividades religiosas.

Sobre a Comunidade Judaica portuguesa exercem-se, actualmente, duas  forças de pressão, algo contraditórias:

bulletuma, semelhante á que se exerce em todo o mundo ocidental democrático, que é a pressão da sociedade, tendente a assimilar, a absorver, a neutralizar  e a esbater as diferenças. Esta pressão resulta numa assimilação progressiva, consequência , não apenas dos casamentos mistos, mas da própria integração quotidiana dos judeus na sociedade.
bulleta outra força de pressão é aquela que confronta a comunidade actual com a memória do passado. Para grande parte das pessoas interessadas nas questões judaicas e até mesmo para muitos historiadores, os arquétipos e modelos judaicos são fornecidos, não pelo judaísmo português actual, demasiado reduzido e relativamente recente, mas pelo judaísmo português medieval ou pelo marranismo.

Os judeus portugueses vêm-se, assim, confrontados com presenças, que são presenças ausentes, porque pertencem ao passado, mas com as quais têm de fazer um esforço permanente de comparação, identificação e demarcação, sob risco de não conseguirem construir uma identidade própria.

Na realidade, estas pressões exercem-se sobre uma comunidade em crise, sob vários aspectos.

Em primeiro lugar, uma crise de sobrevivência física. A tendência para o envelhecimento que já se verificava nos anos 60, acentuou-se: em 1996, faleceram 14 pessoas e foram registados 3 nascimentos. Do ponto de vista quantitativo, a comunidade quase duplicou o número de contribuintes, relativamente há 20 anos, mas parte desses novos membros, encontram-se em Portugal temporariamente, por necessidades do mercado europeu, o que, sendo um fenómeno positivo, dá poucas garantias relativamente ao futuro.

  Em segundo lugar, uma crise espiritual. O lugar e a importância da religião na vida das pessoas mudou completamente. Para grande parte delas, o judaísmo deixou de ser uma forma de vida com regras rigorosas que iam desde a frequência assídua á Sinagoga, passando pelo consumo de comida casher, até ao convívio social, fora e dentro das diferentes instituições judaicas, para se transformar numa vaga relação afectiva ou de fidelidade ao passado.

Deixaram de se realizar  serviços religiosos diários, mantendo-se apenas os semanais do "Shabat" e das festas do calendário judaico, reduziu-se também drasticamente a pratica da "casherut" (alimentação, segundo as regras judaicas).

Embora esta evolução não seja exclusiva de Portugal, verificando-se praticamente em todos os países e em todas as comunidades religiosas, na judaísmo português e particularmente no judaísmo lisboeta, faz-se sentir duramente a falta de uma verdadeira liderança espiritual e religiosa, e de uma educação judaica regular.

Contrariamente a outras comunidades maiores, não é fácil, para o judaísmo português, devido em parte, á sua reduzida dimensão, encontrar em si próprio as forças da sua renovação. Mas, seja como for, essa renovação tem de se operar em diálogo permanente com a sociedade envolvente e nunca á margem dela.

(Artigo publicado na Revista História n.º 15, em Junho de 1999)

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