Rostos do judaísmo
Entrevista com o rabi Friedlander, conduzida por Nuno Wahnon Martins
"Nunca atingimos a perfeição..."
O Rabi Friedlander esteve em Portugal numa Conferência na Fundação
Gulbenkian sobre a globalização, onde fez uma brilhante intervenção. Nasceu em
Berlim em 1927, foi perseguido e preso em criança e, após ter presenciado a
Kristallnacht, fugiu com a família para Cuba. Foi ordenado Rabino no Hebrew
College em Cincinatti, tendo ido viver para Londres em 1966 onde é Rabino da
Westminster Synagogue. Concedeu-nos esta pequena entrevista para o Tikva.
Tikvá: Quando diz que devemos aprender com os nossos erros, o que pretende
afirmar?
Eu não penso que as religiões sejam perfeitas, mesmo quando aceitamos a Torah
Brit Sinai e dizemos que temos um código dado por Dús. O facto é que a
interpretação é feita através de muitos comentários, quer dos Rabbis, quer da
Halachá, que foram mudando com o tempo. Mesmo no Judaísmo Ortodoxo houve
alterações através das gerações, nas leis dietéticas e noutras regras
respeitantes aos costumes judaicos, que foram aceites e passaram a ser uma
autoridade, como é a Torah. Sempre houve mudanças e não podemos achar que
atingimos a perfeição porque não é verdade. Não podemos pensar que somos a única
religião no mundo que tem acesso a D´us, porque não somos. Reconhecemos as
outras religiões e, como disse no meu discurso, Maimonides reconheceu que “o
Islão e o Cristianismo também são vias para D´us, não são as nossas, nós não
mudaremos, mas não podemos negá-las, não podemos questionar a palavra dos
cristãos e dos muçulmanos.” Reconhecemos que têm uma posição válida no mundo.
Como eu disse, um dos problemas com o Judaísmo tradicional é que ele não aceita
críticas, não aceita mudanças dentro da Comunidade Judaica. Fecham as suas
mentes em relação ao Islão, ao Cristianismo e ao mundo secular fora do Judaísmo,
assim como não aceitam o Judaísmo conservador, reformista, progressivo ou
reconstrucionista. Consideram estas visões como radicais e, pura e simplesmente,
negam-nas.Eu penso que este tipo de pensamento enfraquece o Judaísmo
tradicional. Para o fortalecer teremos de aceitar que também erramos, teremos
que avançar, e é o que estamos a fazer. A Comunidade Judaica não é hoje o que
era há 100 ou 1000 anos atrás.
Tikvá: É importante o diálogo inter-religioso?
Na minha vida estive extremamente envolvido no diálogo inter-religioso.
Lembro-me que há alguns anos atrás, tive um longo encontro com o Dalai Lama, e
ele disse-me: “Temos que aprender com o Judaísmo. Eu vejo os Judeus, um Povo que
perdeu o Seu Templo, a Sua Terra, tudo, mas continuam a manter a religião, a
língua, os costumes. O meu povo deixou o Tibete há quase duas gerações, perdemos
os nossos templos, o nosso Estado e estamos a perder a nossa religião e a nossa
língua. Mas o Povo Judeu sobreviveu, conte-me o vosso segredo.” Talvez o segredo
esteja na pressão exterior, nas perseguições, enquanto estivermos rodeados por
pessoas que querem que deixemos a nossa religião, a nossa tradição, ficamos mais
fortes e dentro das nossas tradições. Mas esta não é a resposta completa. Quando
os líderes religiosos não falam uns com os outros, quando as comunidades não se
encontram, se os Judeus não visitam Igrejas e Mesquitas, quando os sacerdotes
não falam uns com os outros, em vez de pontes, criam-se barreiras e muros. Têm
de haver portas nessas barreiras e muros. Nós não podemos, não devemos abandonar
nunca as nossas tradições, as nossas práticas, mas devemos reconhecer e podemos
apreciar as dos outros, e assim poderemos caminhar para a Paz no Mundo, seria um
excelente caminho para a Paz. Faria lembrar a idade de ouro com o Mundo Árabe há
muitos séculos atrás, e se hoje em dia, particularmente no Cristianismo, muitos
se lembrassem do que herdaram do Judaísmo, estariam perto de nós. Precisamos de
amigos mais do que precisamos de inimigos.
Tikvá: O que acha mais importante: o universalismo ou o individualismo?
Eu penso que os dois são vitais para descobrirmos a nossa identidade. Começamos
como indivíduos, vemo-nos como um só, somos uma pessoa, buscamos o nosso
particularismo, mas depois podemos e devemos seguir para o universalismo, não
podemos simplesmente dizer que não há barreiras, que somos todos iguais. A
questão é que temos de dar alguma coisa para o mundo exterior e, eu penso que
são individualismos especiais, conceitos de paz. A tsedaka, a caridade, a
compaixão, tudo isto é algo em que nos aproximamos do mundo exterior. Se nos
preocupar-nos apenas connosco, tornamo-nos piores. Se nos aproximarmos do mundo
exterior, estabelecemos o universalismo, aprofundamos a ética do Judaísmo, de
fazer um mundo melhor e ajudar a contribuir para esse fim. Esta é a única
maneira em que devemos existir.
Tikvá: Como vê o futuro do Povo Judeu? O Rabino Dan Cohn-Sherbook diz que o Povo
Judeu vai acabar num gueto apenas com pessoas ultra-ortodoxas.
Não. Dan e eu somos amigos há muito tempo, quase sempre discordamos e estou
contente de discordar com ele também neste assunto. Não acredito que acabaremos
num gueto, acredito que a nossa força vem do interior para o exterior onde quer
que estejamos. Acredito que uma das lições do judaísmo é a diáspora. Temos o
conhecimento que o coração do Povo Judeu continua em Israel, em Jerusalém,
tiramos a nossa força desse conhecimento, de milhares de anos que estão nos
nossos livros de oração, nas nossas mentes e corações, nunca cairemos num gueto.
Se isso acontecesse iríamos tornar-nos num fóssil. Dan gosta de pôr as coisas da
maneira o mais provocante possível para despertar o interesse. Desde que o
conheço, vejo-o a escrever mais de sessenta livros e a divertir-se com isso. Os
livros não são assim tão diferentes uns dos outros, mas admiro o seu trabalho e
gosto dele como pessoa e estou contente por ter alguém com quem discordar
frequentemente.
Tikvá: Pensa que o Estado de Israel pode ser o futuro do Povo Judeu?
É parte do futuro do Povo Judeu e deve continuar a sê-lo. Penso que se de alguma
maneira sobrevivemos à Shoah, se voltarmos a ser perseguidos, não sei como
poderíamos sobreviver à destruição de Israel. Israel deve continuar a existir e
penso que irá continuar a existir, mas ao mesmo tempo há sempre a tensão, a
dupla polarização entre a diáspora do Povo Judeu e Israel e Jerusalém. É daí que
tiramos a nossas forças, eu não posso simplesmente conceber que Israel seja
destruída, apesar de haver sempre perigo de lhe acontecer algo, mas acredito que
as pessoas irão viver, que o estado irá viver e que se Israel fosse destruído
significaria que estaríamos muito perto da destruição do mundo.