Rostos do judaísmo

Entrevista com Zina Lieberman, conduzida por Diana Ettner

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P: Viveu uma história rica em acontecimentos e episódios marcantes. Fazendo uma pequena viagem ao passado, pode-nos contar como tudo começou?

Eu nasci em Riga, na Letónia, em 20 de Fevereiro de 1922. Foi este o ano em que eu nasci, apesar de nos meus documentos constar o ano de 1924, devido a um erro na sua emissão...
Gostava muito de viver em Riga, onde vivia com toda a minha família. Os meus pais, os meus irmãos, os meus tios, todos viviam ali.
Frequentei a escola primária russa, para onde entrei numa altura em que a minha irmã, quinze anos mais velha do que eu, já tinha terminado os estudos e se preparava para entrar para a Faculdade, para ser dentista.
Fiquei naquela escola até à 4ª classe.
Entretanto, em 1934, após uma tentativa frustrada de golpe de estado por parte dos comunistas, o país conheceu um período de ditadura. Deste período, nasceram as primeiras regras racistas, sendo a primeira delas a obrigação de as crianças frequentarem as escolas correspondentes às suas etnias, ou então a escola letã. A escola russa não aguentou...
Fui então para a escola judaica, onde a língua alemã era a primeira língua.
O ensino primário era feito em seis anos. Uma vez terminado o sexto ano, ou se fazia um teste para entrar para o Liceu e depois ir para a Faculdade, ou então era-nos dado um diploma que nos habilitava a tirar um curso técnico.
Quando terminei o 6º ano, resolvi fazer o teste para ir para o Liceu. Era um teste de Química...
Os testes eram compostos por três perguntas, mas cada teste era diferente. Eu tirei um teste ao qual não sabia responder e por isso resolvi trocar o meu teste e escolher um com respostas mais fáceis. A professora apanhou-me... e eu chumbei!
Telefonei imediatamente para a minha mãe e ela mandou-me ir para casa. Quando cheguei, contei o que se tinha passado e, depois da surpresa inicial, a minha mãe decidiu que eu iria para uma escola letã, só para raparigas.
Eu já tinha o diploma relativo ao 6º ano e a minha mãe foi falar com a Directora dessa escola e disse que eu tinha estado doente e que só por isso não tinha feito os exames, mas que estava a estudar muito em casa. A Directora acabou por me aceitar no colégio!
Aproveitei ainda dois meses para estar na praia, com os meus amigos, mas depois disso disse a todos eles para não me telefonarem porque eu tinha que estudar! Fechei-me em casa, estudei intensamente e passei nos exames, com muito boa nota!
Acabei por fazer a escola até ao fim.

P: Como era a vida Judaica em Riga, nesses tempos?

A verdade é que sempre houve antisemitismo e os Judeus sempre viveram na sua Comunidade, apesar de ser tudo em grande escala.
Nos meus tempos de juventude, pertenci a uma organização de estudantes judeus e, já durante a guerra, dedicávamo-nos a recortar artigos que nos interessavam e a organizar discussões em conjunto.
Tínhamos um grupo grande de jovens e eu jogava muito voleibol, basquetebol, andava de patins!
Perto da praia, havia um orfanato e durante as férias preparávamos teatros para juntar dinheiro para as crianças. Lembro-me de uma vez em que tinha que fazer o papel de uma avó e precisava de um vestido comprido... Fui tirar um à minha mãe, cortei-o e adaptei-o. Quando ela viu não gostou muito!
Organizávamos tudo, vendíamos rifas a todas as pessoas, e até chocolates, ovos, tudo! E depois o dinheiro ia para o orfanato.

P: Tudo mudou, quando começou a guerra...

Sim. Saímos da Letónia e fomos para a Lituânia.
Vivíamos num guetto, num prédio onde também o Exécito estava instalado. Aliás, foi graças ao Exército que nós sobrevivemos nos primeiros tempos porque eles precisavam de pessoas para trabalhar e nós fomos.
Entretanto, começaram as selecções e as procuras e eu fui sempre sobrevivendo a tudo. O nosso guetto fechou, fomos transferidos para outro e a juventude foi-se mantendo.
Nessa altura, escolheram 300 pessoas do guetto para ir trabalhar para outra cidade lituana, para construir um aeroporto. Acabaram por escolher pessoas do meu grupo e lá fomos todos.
Nessa cidade, trocávamos roupas com os lituanos que viviam por ali. Os Alemães fechavam os olhos, até porque nós também lhes dávamos, por vezes, pão e outras coisas... Eles também não tinham nada.
Os dias iam passando, até que a certa altura deixou de vir pão e nós percebemos que alguma coisa se estava a passar.
Entretanto, uma rapariga do nosso grupo queria desesperadamente ver a mãe, que tinha ficado no guetto. Nós insistimos para que ela não fosse porque sabíamos que alguma coisa se estava a passar, já que o pão não vinha há muito tempo.
Ela, no entanto, não aguentou e foi até ao guetto. Quando chegou lá, os Alemães perceberam que se tinham esquecido do nosso grupo... E foram lá buscar-nos.
Eu trabalhava no armazém e nunca me vou esquecer de dois Birmaneses que me vieram pedir uma ferramenta para cortar o arame.
Quando os Alemães chegaram para nos buscar, nós estávamos todos junto ao arame e eu deixei de ver os dois Birmaneses! Só mais tarde uma amiga minha me disse que tinham conseguido fugir graças à ferramenta!
Levaram-nos então para o campo de concentração.

Houve um dia, já no campo, em que chamaram 900 mulheres, grupo onde eu me inclui. Mandaram-nos escolher roupas e sapatos de pessoas que já tinham sido mortas (eu tive sorte porque escolhi sapatos de homem e não fiquei com os pés a doer..) e colocaram-nos num combóio. Levaram-nos para trabalhar num lugar horrível, a cavar trincheiras contra os tanques. Não comíamos nada...
Entretanto, chamaram dez raparigas para ir para o campo descascar batatas. Eu fui com o meu grupo de amigas.
Um dia, enquanto trabalhava, levantei-me para ir à casa-de-banho. Pelo campo circulava um oficial alemão e uma rapariga, também pertencente ao exército alemão.
Quando voltei, uma amiga disse-me que estavam a chamar o meu número. Eu peguei na minha faca e fui ter com o oficial alemão. Ele levantou então os braços e começou a gritar comigo.
Eu, não sei bem como, levantei a mão onde tinha a faca e comecei a gritar com ele em alemão. “Ninguém, até agora me bateu!” gritei eu. “E o que se passa?”, continuei.
Ele então afastou-se, mas soube que a alemã que andava pelo campo se tinha ido queixar que eu tinha sujado o campo.
Eu então chamei-a e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Ela disse que o oficial alemão a tinha obrigado a dizer um número... e ela tinha dito o meu!
Regressei então à minha tarefa de descascar batatas, sem ainda perceber muito bem o que tinha acontecido. As minhas amigas estavam brancas, incrédulas. Foram elas que me disseram que eu tinha empunhado uma faca ao soldado alemão... e só aí eu percebi o que tinha feito.
No dia seguinte, decidimos não ficar a descascar batatas e fomos trabalhar. Eu não estava mais segura perto daquele oficial.

O trabalho era feito em condições horríveis. Muito frio, vento, chuva, um horror! Um dia, quando o vento era insuportável, decidimos que não íamos trabalhar. Podiam-nos matar mas naquelas condições era impossível! Foi nessa altura que nos deram a entender que devíamos ir trabalhar, porque a guerra parecia estar no fim.

Foi então que o exército russo cercou o campo... tudo parecia estar a acabar.

Tivemos que sair dali e começámos o caminho, até que chegámos a um bosque onde os guardas disseram que podíamos ficar desde que não disséssemos nada, a aguardar a liberdade. Fomos ficando por ali. A enfermeira do nosso grupo descobriu um armazém dos Alemães, onde havia muita coisa que usámos.
Finalmente, uma noite, ouvimos muitos assobios e música russa. O exército russo tinha chegado! Correram todos atrás deles. Eu e a minha amiga Margot encostámo-nos a um canto e pela primeira vez eu chorei...
Um soldado russo veio ter connosco e perguntou por que é que estávamos a chorar se, finalmente, estávamos livres. Respondemos que agora começava a busca de todos os outros!
Disseram-nos para ficarmos ali porque rapidamente chegariam camiões para nos buscar. Passaram-se dias e nada... Ao fim de duas semanas, apareceram uns soldados russos, bêbedos, que nos disseram que era melhor irmos embora porque não chegariam camiões.
Arranjámos então uns trenós e por entre muito vento e um clima desagradável, fomos avançando no caminho. Em dois lugares fomos recusados, até que na nossa terceira paragem nos deixaram ficar.
Arranjaram-nos roupa, fomos interrogados pela Polícia Secreta e fizemos um curso rápido de enfermagem. Um dia, disseram-nos que nos preparássemos para ir embora. Fomos para um hospital, onde pela primeira vez, depois de tudo o que tinha acontecido, encontrámos Judeus. Começava-se então a falar da Palestina!

P: Como foi a sua vida a partir daí, depois da dura experiência da Guerra?

Depois de todos estes acontecimentos, eu fui para a Palestina, ilegalmente. Antes, estive ainda seis meses no Chipre.
Fiquei um ano e meio na Palestina, a trabalhar num Hospital e foi lá que conheci o meu marido.
Em Março de 1948, viemos para Portugal, onde o meu marido tinha família. Já se começava a preparar a guerra da Independência.

P: Como foram os primeiros tempos em Portugal e como era a vida comunitária em Lisboa?

O meu primeiro contacto, a nível a Comunidade em Lisboa, foi com a Fany Katzan, prima do meu marido e casada com um português.
Mantive fortes ligações com a Comunidade nessa altura tinha um grupo grande, fazia-se muitas coisas, havia muitas actividades no Centro.
Entretanto, a vida foi-se modificando, o grupo foi-se alterando e eu perdi os fortes contactos que tinha com a Comunidade.

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