O restauro do Cemitério Judaico da Estrela, um gesto solidário

Na última semana de Fevereiro, estiveram em Lisboa representantes de um grupo de voluntários cristãos que ajudam a restaurar cemitérios judaicos.

Este grupo, “Working group for maintenance of jewish cemeteries, a contribution to reconciliation, a gesture of friendship”, foi criado em 1974 e já trabalhou em mais de 45 cemitérios judaicos, nomeadamente na Holanda, mas também em Varsóvia e noutros países de Leste. Na Holanda, em particular, este grupo colabora regularmente, a pedido do Rabi Pereira (que já esteve na nossa comunidade, na cerimónia dos 500 anos da expulsão dos judeus de Portugal) no restauro do cemitério sefardita português de Amstel.

Informado do estado de degradação do nosso cemitério histórico da Estrela, onde repousam as campas judaicas mais antigas, actualmente existentes em Portugal, o responsável deste grupo, o Rev. Sybrandi contactou a Direcção da CIL oferecendo o seu trabalho voluntário e a sua experiência técnica para restaurar o nosso cemitério, de forma totalmente benévola. Preocupada com a degradação progressiva do estado do cemitério e com o consequente desaparecimento das inscrições das campas, a Direcção da CIL, depois de confirmar com o responsável dos cemitérios judaicos da Holanda a idoneidade deste grupo, aceitou a proposta que, para a Comunidade representa um custo zero e a certeza do trabalho bem feito.

Parte desse grupo permaneceu uma semana em Lisboa, tendo já limpo totalmente o cemitério de todas as ervas daninhas e arbustos. A segunda fase está planeada para finais de Abril com um maior número de jovens voluntários que, em colaboração com voluntários da CIL, levarão a cabo o restauro das campas, do muro circundante e do portão.

Pensámos que isto seria motivo de satisfação para nossa comunidade. Enganámo-nos: um grupo de correligionários, entre os quais se encontram membros da Hevrá masculina e Parnassim decidiram opor-se terminantemente ao restauro do cemitério nestas condições, argumentando com a “orientação cristã” da referida organização. Diz o grupo em carta à direcção que “é uma vergonha para a CIL aceitar a intervenção de cristãos para cuidar dos nossos mortos.” Diz ainda que “as campas não são propriedade da CIL, mas dos herdeiros dos defuntos”.

Em relação a tudo isto gostaria de dizer o seguinte:

1. É obrigação da Direcção da Comunidade preservar e manter o seu património histórico, em particular da sinagoga e dos cemitérios. A falta de meios e de interesse geral pela conservação do cemitério histórico da Estrela levou-nos a aceitar a proposta acima referida.

2. No entanto, se é nossa obrigação zelar pelo património da CIL, é também nossa obrigação respeitar a vontade dos herdeiros dos defuntos. Não tocaremos nas campas dos defuntos cujos herdeiros assim o desejem. Aguardamos que nos comuniquem os nomes, em conformidade com o pedido já formulado.

3. Finalmente e quanto ao argumento principal de serem “mãos cristãs” a tocarem nas campas, pergunta-se: não são cristãs as mãos que hoje tratam do cemitério da Afonso III e cristãs igualmente as mãos que tocam, para os limpar, os livros sagrados e todas as peças de culto religioso da sinagoga? Será que o facto dessas pessoas serem em regra geral remuneradas, as redime do “pecado” de não serem judias? Por que é disso que se trata, e eu não posso deixar de dizer com toda a clareza que não me revejo de maneira alguma nesta concepção sectária, discriminadora e exclusivista de ser judeu. A tradição desta comunidade sempre foi uma tradição humanista e solidária, nada tem a ver com a visão intolerante, integrista e radical que invocando D’us, é sobretudo contra os homens.

O gesto do grupo de voluntários holandeses é um gesto de solidariedade humana e religiosa. Ao aceitá-la, temos consciência de continuar a tradição da nossa comunidade e nomeadamente a de um homem para quem o humanismo foi sempre a principal característica judaica: Sam Levy.

Esther Mucznik

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