A CIL e os refugiados de Hitler
No dia 29 de Abril celebrou-se o dia do Holocausto, o Yom Hashoah.
A
Comunidade Israelita de Lisboa, felizmente, não sofreu directamente as
consequências do nazismo, devido à neutralidade política portuguesa durante a
2ª Guerra. Mas todos sabemos que milhares de refugiados judeus e não judeus
passaram por Portugal fugindo da ocupação nazi e dos campos da morte.
Qual foi nessa altura o papel da nossa comunidade no auxílio a esses
refugiados?
Logo em 1933, a Comunidade e o Hehaber criam a Comassis,
Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados, presidida primeiro
por Adolfo Benarus e mais tarde por Augusto Esaguy, médico, cujo nome acabaria
por se confundir com o da Comissão, a ela se dedicando incansavelmente até ao
seu final, em 1941. Um relatório de Augusto Esaguy, escrito em 1941, três dias
antes da sua partida para os E.U., revela que desde a data da sua criação,
este organismo prestou assistência moral e material a perto de 40 mil
refugiados, nomeadamente com o apoio do Hospital Israelita e da Cozinha
Económica. A COMASSIS conseguiu que a HICEM de Paris e a American Joint
Distribution Commitee, de Paris e de New York, organismos judaicos de
assistência aos refugiados, subsidiassem materialmente a sua acção, pagando as
viagens e o sustento dos refugiados, assim como o funcionamento da própria
Comissão. Foi também a COMASSIS que conseguiu das autoridades portuguesas as
autorizações para a instalação em Portugal, após a queda da França, da JOINT e
da HICEM, permitindo-lhes exercerem a sua actividade benemérita em Portugal.
Com a entrada dos E.U. na guerra, em Dezembro de 1941, no seguimento dos
bombardeamentos de Pearl Harbour, as autoridades americanas apelam ao regresso
dos seus cidadãos para os E.U. Assim os dirigentes da JOINT e da HICEM, de
nacionalidade americana regressam e, com eles, Augusto Esaguy, embora este
fosse de nacionalidade portuguesa. Com a partida para os E.U., começa uma nova
fase no trabalho de assistência aos refugiados: a COMASSIS é dissolvida e é a
própria Comunidade Israelita que assume directa e integralmente todo o apoio,
através da Secção de Assistência aos Refugiados, dirigida por Elias Baruel,
médico e Vice-Presidente da Comunidade.
Em que consistia o trabalho
quotidiano de assistência aos refugiados judeus?
Em primeiro lugar, era
necessário assegurar o seu sustento ou seja a alimentação e o alojamento,
assim como os cuidados médicos. A partir de 1942, a sede da CIL passou a
funcionar na Rua do Monte Olivete e cada refugiado que se apresentava, na
Comunidade, ( a estação do Rossio funcionava como uma espécie de antecâmara),
recebia uma mensalidade que lhe permitia cobrir as suas necessidades mínimas,
que incluíam alimentação. Recebiam, também vales para pagar o alojamento em
pensões e hotéis em Lisboa e nas zonas de residência fixa ( o Hotel Rosa nas
Caldas da Rainha, por ex.) com os quais a CIL tinha acordos e também o
vestuário em armazéns e lojas de vestuário com quem a Comunidade tinha os
mesmos acordos.
Para os que estavam em Lisboa e necessitavam de comer na
Cozinha Económica, gerida pela Comunidade, eram-lhes distribuídas senhas de
refeições. A Cozinha Económica, situada na Travessa do Noronha, chegou assim a
fornecer centenas de refeições diárias aos refugiados, entre os quais se
encontrava, por vezes, um homem muito especial, refugiado no seu próprio país,
vítima da injustiça de um regime que não lhe perdoou a desobediência,
Aristides de Sousa Mendes.
Também do ponto de vista médico, a Comunidade
tinha acordos com diferentes médicos de medicina geral e especialistas.
Alguns, como o Dr. Maia Mendes, ou os médicos Bibberfeld e Katz, ambos
igualmente refugiados e o último especialista em oftalmologia, davam consultas
duas vezes por semana no Hospital Israelita, outros recebiam em consultórios
próprios com os quais a CIL tinha acordos.
Quando era solicitada, a CIL
fornecia igualmente assistência religiosa. Entre os refugiados havia muitas
pessoas praticantes que constituíam pequenos "minianim", a quem a Comunidade
emprestava um " Sefer Thorah" , para a leitura do Shabat. Em caso de
necessidade, a Comunidade também fornecia carne "casher" e "matsot". Também se
encarregava dos enterramentos, no cemitério judaico, dos refugiados que aqui
faleciam. Um outro tipo de assistência, fundamental, mas muito mais complexa,
era a resolução de todo o tipo de problemas relacionados com as autoridades
oficiais, nomeadamente com a PIDE.
Foi preciso, de facto toda a habilidade,
discrição, serenidade e grande humanidade que caracterizavam Elias Baruel, que
conduzia sistemáticamente todas essas negociações, para a Comunidade poder
desempenhar esse difícil papel.
“Fizemos o que podíamos e o que não
podíamos”
O estudo dos documentos, os testemunhos das pessoas que nela
participaram , quer da própria Comunidade, quer dos organismos internacionais
de assistência, quer, sobretudo dos próprios refugiados, permite concluir que
a acção da Comunidade foi, de facto, importante. "Fizémos o que podíamos e o
que não podíamos", diz Yvette Davidoff, ela própria refugiada de Viena e que
trabalhou sempre na assistência aos refugiados judeus.
Mas, mais do que a
avaliação da própria comunidade falam, de facto, os testemunhos.
Existem, nos arquivos da Comunidade, dezenas de cartas de refugiados,
dirigidas ao Dr. Baruel e a Yvette Davidoff, em reconhecimento do apoio
prestado. Citaremos apenas uma que tem, para nós, um significado muito
especial. É uma carta recente, de 13 de Setembro de 1989, escrita por John
Paul Abranches, filho de Aristides de Sousa Mendes e que com ele partilhou e
presenciou não apenas a decisão do pai de dar os vistos, mas também todas as
terríveis consequências que se seguiram aquela decisão.
Diz a carta,
dirigida a Yvette Davidoff: "(...)Gostava de lhe tornar a dizer que a
assistência prestada por si e pelo Comité Judaico em Lisboa, aos meus pais e a
outros membros da nossa família foi muito apreciada. As nossas circunstâncias
eram muito difíceis, e a Comunidade Judaica Portuguesa foi a única que se
preocupou. Obrigado pela vossa ajuda constante ao longo desses anos difíceis.
Se alguma vez, alguém ousar dizer, 'Porque razão os judeus não ajudaram?', por
favor, não hesite em deixá-los ler estas minhas palavras.(...)."
É evidente
que numa situação tão trágica e dramática como a que se vivia, qualquer
avaliação é profundamente insatisfatória, tudo o que se fez, representa
necessariamente uma gota de água no oceano imenso e terrível daqueles por quem
nada pôde ser feito. Mas palavras como estas, permitem-nos olhar de frente
esses anos, permitem-nos, no meio da tormenta interior que eles ainda
representam, algum momento de serenidade.
(extractos do artigo “O papel
da Comunidade Israelita de Lisboa no apoio aos refugiados durante a 2ª Guerra”
de Esther Mucznik, publicado na Revista de Estudos Judaicos nº5/Nov. 2001)