Cartas dos Leitores
Miguel Bekerman
Av. Visconde Valmor
75-2º Esq
1050-239 Lisboa
Data : 30 Maio de 2003
Exmo. Conselho Editorial
Do Boletim Tikvá da CIL
Por estar ausente de Lisboa, só ontém me foi possível ler o Boletim Tikvá nº 34
do mês de Maio. Ao ler a rúbrica “contando a nossa história, A CIL E OS
REFUGIADOS DO HITLER”, vieram-me a memória episódios que, agora, considero de
extrema importância.
Não poderei mencionar as datas exactas porque nunca imaginei ter que um dia
falar no assunto, razão porque não as fixei na memória, mas passou-se na época
desde principio até ao fim da 2ª guerra.
1. No principio da guerra vieram para Portugal dezenas de crianças,
principalmente órfãs, salvas da ocupação nazi por pessoas que com risco da
própia vida as “contrabandeavam” para Portugal. O problema era o alojamento
destas crianças. Uma Senhora ofereceu-se para tomar conta delas. Não me recordo
se foi Hicem, Joint ou outra instituição judaica que alugaram uma casa com salas
muito grandes em Paço de Arcos (edificio por trás do cinema) onde foi instalado
dormitório numa das salas e na outra um refeitório. A Senhora abnegadamente
dirigia o orfenato e embora tinha pessoas para a ajudar, não era nada fácil
visto tratar-se de crianças. Mas nunca esmoreceu porque no sentimento dela
pairava sempre a “Yidishe Mame”. Tempos depois as crianças foram levadas para
fora, salvo erro para Israel, e o orfenato terminou.
2. A Senhora era muito religiosa, descendia de uma família rabinica. A casa era
Kosher, rigorosamente Kosher. Para as festas de Pesah tinha um fogão e louça
guardada num compartimento “hermeticamente” fechado. Diga-se de passagem que o
reverendo Disendruk e família acompanhavam os seders de Pesah em casa desta
Senhora.
Acontece que entre os refugiados havia muita gente religiosa que se alimentava
mal porque não tinham comida kosher. A Senhora, que tinha uma casa relativamente
grande, resolveu oferecer-se para servir refeições kosher. Embora contra vontade
dos filhos, porque não tinha saúde para tanta esforço, (lembro-me que mantinha
uma grande amizade com a avó da Esther Mucznik e iam todos os anos fazer
tratamentos nas termas de Monte Real) pós em pratica a sua ideia. È claro que a
Hicem (ou Joint) pagavam as refeições, mas os preços mal davam para cobrir as
despesas dos alimentos, criada e duas empregadas (que também eram refugiadas)
para servirem as mesas. A Senhora levantava-se às 6 horas da manhã para fazer
compras, ir ao mercado do Rato para assistir a matança de galinhas (também não
me recordo quem era o shohet) ir ao talho judaico do Rato, cozinhar almoço e
jantar, as vezes para 40, 50 ou mais pessoas, muitas das quais não era por
questões de kosher, mais por gostarem da comida da Senhora do que a dos
restaurantes, ajudar a criada a lavar a louça (ainda não havia maquinas de
lavar) e geralmente deitava-se a meia noite, trabalhos que fazia gratuitamente.
Tenho a maior honra e muito orgulho de dizer que esta Senhora foi a minha
querida e inesquecível Mãe.
Com pedido de publicação desta carta apresento os meus cordiais cumprimentos
Miguel Bekerman
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